(...) da ashfixia à serotonina

terça-feira, fevereiro 21, 2006

209º

Corpo de Baile

Há uma nesga de pele em cascata, na berma da porta.
Esconde-se um ser animado nos contornos da madeira.
O vulto que se envolve na neblina não consegue ver, ouvir ou tactear.
E segue, concentrado pela sonda que cheira e escolhe...
Segue o rasto móvel da bailarina.
A dança exprime-se em volúpia ao olfacto quente da fera.
A única fonte de calor...
Para lá das escamas andrajosas há um nariz bem posicionado.
E mandíbulas! Mandíbulas que ameaçam o ar plácido do baile.
A bailarina gira em torno de si própria e espalha o seu perfume na tela.
É um retrato que nasce às mãos do pintor e que deslumbra.
Apaixona-se o pai de olhos meigos e deleita-se a fera gelada.
É o odor aveludado e adolescente que aviva as mandíbulas e a perversão...
A menina não cresce para o pai mas sim para o verme.
Solta um perfume ardiloso e despe-se para o olfacto assassino.
Ela não sabe de nada. Ela dança horas a fio em pés de inocência.
Ela não sabe de nada mas é surpresa.
(Há um recanto na menina que aguarda o monstro.)

- Shiu!

Uma parte dela grita em criança.
Outra parte dela dança já crescida.

Ela não sabia o que esperava mas sentia o corpo ameaçar.
Pressentiria o despontar de um sexo desperto?
Toca o despertador na mesinha de cabeceira.
Ouvem-se buzinas lá fora e também sirenes e travões.
Cheira a sangue e fogo na cidade.

- Pai?

O pai não está mas a menina sabe que não precisa dele.
Ela tem companhia e não conta a ninguém.
No espelho do quarto vê-se um desenho curvilíneo.
Reflecte-se uma mulher suave e cristalina.
Do outro lado, a quietude palpitante dos minutos percebe-se no olfacto incessante.
O faro guia o monstro para a dança.

O baile está prestes a começar.