(...) da ashfixia à serotonina

quarta-feira, março 29, 2006

249º

Objecto heteróclito

Na caixinha de surpresas escondo o teu riso mais antigo.
Escondo os teus gestos e expressões infames, os teus gostos abjectos.
Não percebemos os dois nada do que se passou.
Um dia, há muito tempo atrás, chegaste perto de mim e disseste que gostavas de mim tal como eu era.
Eu perguntei-me sempre o que quiseras afinal!
Poderia ser uma busca de identidade, uma descoberta de ti através de mim.
Na caixinha de surpresas nunca pude guardar um pouco de néctar teu porque não o tinhas.
Foste o primeiro objecto heteróclito que conheci.
Brincava contigo à noite, no sótão.
Pousei-te muitas vezes no parapeito da janela e tu ficaste lá a olhar-me ininterruptamente.
Nestas alturas conseguias ser plácido e talvez até virtuoso.
Talvez porque estavas de boca fechada, lábios cozidos a fio de pesca.
Armadilhei-te! Ou se calhar...
Se calhar caí eu numa armadilha absurda. Uma falha.
Despersonalizada, fui sendo barro quente, molhado.
Viste-me maleável. E, na volta, quando querias puxar o cordel para me mexer os membros, as caras...
Nessa altura eu era rocha cortante.
Bateste para tentar moldar, para produzir som.
Quando batias eu entranhava-me no fundo dos meus pés, na pele debaixo das unhas.
Mais tarde veio o maremoto...
Uma corrente veloz, um remoinho devorador.
Levou-te o tempo e o esquecimento. Levou-te de mim pela vontade dos anos.
Mais ainda, levou-te um segredo espalhado no inimigo.
Agora peço-te que me contes cada pormenor, cada milésimo de segundo passado à berma do inferno.
Elucida-me pois preciso de saber porque fiz o que fiz contigo.
Porque foste uma merda tão grande e asquerosa.
Um estúpido objecto heteróclito.